Procurador sustenta que prestações de contas do casal estão gravemente comprometidas devido à falta de comprovação das despesas
Envolvidos em polêmicas desde que começaram a viver como marido e mulher, em maio de 2020, o deputado federal Loester Trutis e a advogada brasiliense Raquelle Lisboa Alves Souza, ambos do PL, terão de devolver R$ 1.013.888,90 do fundo eleitoral, utilizados indevidamente durante a campanha deste ano. Desse montante, R$ 556.388,96 deverão ser restituídos por Trutis e R$ 457.500,00 por Raquelle.
Marido e mulher tiveram as contas de campanha rejeitadas pele Procuradoria Regional Eleitoral de Mato Grosso do Sul. As manifestações foram encaminhadas a um juiz federal. Caso o magistrado sorteado acolha os pedidos da “fiscal da lei”, o casal vira réu.
Trutis e Raquelle receberam R$ 1 milhão cada da Direção Nacional do PL, privilégio que chegou a ser bastante criticado por vários candidatos da legenda em Mato Grosso do Sul.
Na chapa para deputado estadual, a esposa de Trutis recebeu valor até 66 vezes maior que outras concorrentes da legenda. Deputados estaduais reeleitos pelo PL, Coronel David, João Henrique Catan e Neno Razuk receberam R$ 300 mil cada da Direção Nacional, ou apenas 30% dos repasses feitos à Raquelle, por exemplo.
Trutis, que não se reelegeu, também teve repasses bondosos do PL, R$ 1.026.000. Marcos Pollon, deputado federal mais votado, por exemplo, recebeu R$ 550 mil e Rodolfo Nogueira, o Gordinho do Bolsonaro, também eleito, R$ 550 mil. A suplente de deputada federal Luana Ruiz teve repasse do fundo eleitoral cinco vezes menor que o de Raquelle, derrotada como deputada estadual.
“Grave comprometimento”
Os pareceres da Procuradoria Regional Eleitoral contra Loester Trutis e Raquelle Lisboa foram divulgados no final de novembro e início de dezembro. Em ambos os documentos, há menções sobre a falta de comprovação dos serviços prestados pelas empresas.
Deputado e esposa foram pegos ao apresentarem notas fiscais dos mesmos prestadores de serviços. Os procuradores constataram ainda superposição de trabalhos, cujo artifício foi trocar apenas os sinônimos e expressões parecidas, especialmente sobre comunicação digital, como criação de identidade visual para redes sociais e de identidade visual.
“Os documentos juntados não são aptos a comprovar a efetiva prestação dos serviços e não há demonstração de que os materiais foram, de fato, produzidos pela empresa contratada, tampouco que as publicações na rede social Instagram tenham derivado, diretamente, das atividades de criação de identidade visual ou gestão de tráfego estabelecidas. Quanto às demais atividades contratadas, sequer foram objeto de comprovação”, descreve o procurador Pedro Gabriel Siqueira Gonçalves em um dos pareceres sobre as contas de campanha do casal.
Foram encontradas inconsistências em pelo menos R$ 1 milhão dos serviços supostamente realizados. Ao cobrar a devolução dos recursos desviados ou mal aplicados, o procurador responsável pela análise das contas do deputado federal e da esposa considerou haver “grave comprometimento” nas informações fornecidas por eles.
Diz o procurador: “Pelas razões expostas, considerando que a utilização de recursos públicos deve se pautar pela máxima transparência, higidez e probidade e, ainda, sendo verificado que a candidata (ou candidato, no caso de Loester Trutis) não procedeu à suficiente comprovação da prestação dos serviços contratados junto às empresas em comento, evidencia-se o grave comprometimento da confiabilidade das contas prestadas”.
Gastos exorbitantes
Cabe esclarecer que, no valor cobrado pela Procuradoria, não estão incluídas eventuais irregularidades que vierem a ser encontradas sobre os recursos públicos gastos com impulsionamento de material nas redes sociais. Somente com a promoção de postagens no Facebook, Instagram e Google durante as eleições, Loester Trutis torrou impressionantes R$ 311.685,00 e Raquelle, R$ 257.388,00.
Somente com a promoção de postagens no Facebook, Instagram e Tik Tok durante as eleições, Loester Trutis torrou impressionantes R$ 311.685,00 e Raquelle, R$ 257.388,00
Para se ter ideia do montante expressivo do fundão torrado pelo casal para impulsionar material de campanha, os candidatos a governador de Mato Grosso do Sul que disputaram somente o primeiro turno — Marquinhos Trad (PSD), Rose Modesto (sem partido), Giselle Marques (PT) e André Puccinelli (MDB) — gastaram R$ 259 mil, R$ 155 mil, R$ 150 mil e R$ 110 mil, respectivamente. Trutis, por exemplo, gastou quase três vezes mais que Puccinelli e Raquelle mais de duas vezes.
Coincidências
A Procuradoria constatou algumas coincidências na prestação de contas de Trutis e Raquelle. Uma delas foi a troca de valores entre duas empresas: Cid Nogueira Fidelis e JC Hipólito Taques. Quando a primeira empresa emitia nota com valor maior a Trutis, a outra emitia nota com valor inferior a Raquelle. E o processo se repetia, inversamente, com a outra empresa.
Somado a isso, há outras suspeitas sobre essas duas empresas. A Cid Nogueira Fidelis recebeu R$ 440 mil do casal. Cid é irmão do ex-chefe de gabinete de Loester Trutis, Ciro Nogueira Fidelis, réu no processo em que o Supremo Tribunal Federal investiga o suposto atentado contra o deputado federal, também acusado.
A empresa Cid Fidelis Nogueira teria prestado serviços semelhantes ao casal, como “pacote de produção audiovisual para campanha”, “planejamento e consultoria de marketing para campanha”, “consultoria e reposicionamento de imagem em fotografia”, “produção fotográfica em estúdio”, e “roteiro, produção e finalização de material audiovisual jingle oficial”.
Outra empresa que teria prestado serviços ao casal, a JC Hipólito Taques Comunicação, recebeu R$ 336 mil, sendo R$ 247 mil do deputado federal e R$ 89 mil de Raquelle. Na prestação de contas de Trutis e esposa, as notas fiscais mencionam serviços de “criação de identidade visual para redes sociais”, “criação de banners redes sociais”, “gestão de tráfego Instagram” e “gestão de tráfego Facebook”.
Ronda Eventos e Publicidade também teve os pagamentos reprovados pelo trabalho de “assessoria de comunicação para produção de conteúdo eleitoral de rádio e de televisão”. A empresa recebeu R$ 17 mil do casal, sendo R$ 8.500 de cada. Constam ainda da lista Hernani Filmes e Marketing Digital, de Brasília, e Lucilene da Cunha Idamis, ambas sem comprovação dos serviços.
Capacidade técnica
Além da coincidência de terem prestado serviços semelhantes, as empresas Cid Nogueira Fidelis e JC Hipólito Taques não têm capacidade técnica para realizar os trabalhos descritos nas notas fiscais.
A Cid Nogueira Fidelis, segundo dados do cartão do CNPJ (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica), disponível na internet, funcionaria na Rua Rui Barbosa, próxima à Avenida Afonso Pena, região central de Campo Grande, numa sala minúscula. Segundo comerciantes vizinhos ouvidos pelo MS em Brasília, a sala está fechada há vários anos e afirmam desconhecer que ali atue uma agência de marketing digital.
O mesmo ocorre com a JC Hipólito Taques, cujo dono é personal trainer. A reportagem do MS em Brasília esteve por três vezes no endereço de instalação, conforme consta do cadastro do CNPJ, um prédio aparentemente abandonado, na Vila Planalto. E recebeu informação de que a empresa está em férias coletivas. Isso ocorreu antes, durante e depois das eleições.
Fora da realidade
Para ter ideia de quanto custariam os serviços descritos em todas as notas fiscais apresentadas por Trutis e Raquelle, exceção aos serviços de impressão, o MS em Brasília consultou três agências de publicidade e de marketing digital, de pequeno e médio porte, em Campo Grande, com a condição de não divulgar nomes.
Com base nas cotações, chega-se à conclusão de que o deputado e a esposa tiveram supostamente gastos exorbitantes. Para deputado federal, a estimativa de custo médio, para três meses de campanha, seria de R$ 120 mil e para deputado estadual, média de R$ 90 mil. Trutis informa ter gastado R$ 556 mil e Raquelle, R$ 457 mil.
Chega-se à conclusão de que o deputado e a esposa tiveram supostamente gastos exorbitantes
O site apurou ainda que, embora Trutis e a esposa tenham apresentado notas fiscais sobre produção de programas para o horário eleitoral gratuito, esse trabalho é realizado pelos partidos políticos. Essas gravações devem obedecer a um padrão mínimo. De preferência, em estúdio único, mesmo ângulo, iluminação, som e imagem, para não haver distorções na qualidade do material produzido.
Outro lado
O deputado federal Loester Trutis e a sua esposa e ex-candidata a deputada estadual, Raquelle Lisboa Alves Souza, foram procurados quarta-feira (7), às 18h05, para comentar os pedidos de devolução de recursos do fundão, feitos pela Procuradoria Regional Eleitoral de Mato Grosso do Sul.
Trutis e Raquelle se dizem tranquilos em relação aos gastos de campanha e quanto ao andamento da prestação de contas. Segundo eles, as despesas foram realizadas “de forma íntegra, correta e de acordo com a legislação eleitoral”.