Medidas eleitoreiras embutem bomba fiscal com capacidade de limitar efeito positivo dos benefícios,
Não é sem razão que a PEC para turbinar benefícios sociais às vésperas da eleição presidencial de outubro, e só até o fim do ano, recorrendo para isso à decretação de um duvidoso “estado de emergência”, aprovada nesta 5ª feira (30), em 2 turnos no Senado, está sendo chamada de “PEC do Desespero”, “PEC Kamikaze” ou ainda “PEC do Golpe”.
A proposta aprovada, que segue agora para a Câmara dos Deputados, é uma tentativa, apoiada em dribles nas leis eleitorais e fiscais, de mudar os rumos da preferência do eleitorado. As pesquisas de opinião têm apontado uma firme estabilidade na disputa presidencial, com o ex-presidente Lula (PT) à frente do presidente Jair Bolsonaro (PL), candidato à reeleição.
Entre os 73 senadores que votaram, só José Serra (PSDB-SP) deu voto contrário. Não havia, nem poderia haver, ninguém contra a ampliação de benefícios a grupos necessitados, mas sim em relação à forma como a que se daria a concessão e suas consequências. Como disse Serra ao explicar seu solitário voto contrário, além de violar leis, o pacote resulta numa “bomba fiscal”, que só vale no período eleitoral, mas com potencial de comprometer ainda mais as contas públicas.
A lei em vigor veda ao governante criar benefícios sociais ou mesmo ampliar aqueles já existentes em ano eleitoral sem que tais benefícios já estejam previstos no Orçamento do ano, previamente aprovado pelo Congresso. O desespero revelado pela PEC fica evidente na parte da proposta de emenda à Constituição que decreta “estado de emergência” no país. A expectativa de Bolsonaro e apoiadores é de que seja possível “comprar” votos com a distribuição de “bondades”.
Com a manobra, os governistas buscam contornar as exigências da lei eleitoral. O lance se completa com a previsão de que os recursos para bancar os novos benefícios possam ser obtidos com créditos extraordinários. Créditos extraordinários não se enquadram na regra de controle do teto de gastos. Esse é o aspecto kamikaze da PEC, no sentido de que se propõe a romper, além das regras eleitorais, as de controle das contas públicas.
Senadores oposicionistas aprovaram a PEC depois de negociar uma redução de danos no texto apresentado pelo relator Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE). O golpe que se pretendia aplicar incluía abrir espaço para que o “estado de emergência” não se restringisse à concessão dos benefícios previstos na PEC. A redação original do parecer do relator, continha um gato escondido no texto que abria espaço a outras derramas de dinheiro público no período eleitoral.
No fim, não prosperou a tentativa de passar um cheque em branco escancarado, expressa num inciso de redação inacreditável. Ele previa que, neste peculiar “estado de emergência”, não se aplicaria “qualquer vedação ou restrição em norma de qualquer natureza”.
Retirado o bode da sala, restou uma emenda constitucional que passa ao largo dos controles fiscais em mais R$ 40 bilhões, por 5 ou 6 meses, dependendo de quando os benefícios ampliados e os novos começarão a ser pagos, se ainda em julho ou em agosto. Com ela, enquanto se monta uma típica operação de estelionato eleitoral —que nome se pode dar à concessão de benefícios apenas em período eleitoral?—, potencializa-se a balbúrdia administrativa que já tem avançado com celeridade neste fim de governo.
A decretação do “estado de emergência” pela PEC não vai evitar as possibilidades de judicialização da medida. Antes disso, vai trazer insegurança para os servidores públicos encarregados de executar as medidas previstas na proposta de emenda constitucional. À luz do histórico de processos e multas que servidores enfrentaram em outras épocas, ao assinar pareceres e documentos em questões jurídicas duvidosas, a hipótese de um “apagão das canetas” não pode ser descartada.
Essa possibilidade, capaz de atrasar e até comprometer a efetiva chegada dos benefícios ao público-alvo, é, contudo, só uma das possíveis pedras no caminho das medidas previstas na PEC como cabo eleitoral de Bolsonaro. A jogada eleitoral dos governistas pode esbarrar também na incapacidade de atingir a totalidade dos elegíveis, formando uma legião de excluídos das “bondades” oficiais.
Há, só aqui, 2 possíveis problemas. Primeiro, R$ 600 hoje, em termos de poder aquisitivo, é menos do que foram R$ 600 em 2020, quando o auxílio emergencial, decidido pelo Congresso, enquanto o governo Bolsonaro hesitava e o ministro da Economia, Paulo Guedes, queria restringir o benefício a R$ 200 mensais, chegou a reduzir os índices de pobreza extrema. Corrigido pela inflação que está acima de 2 dígitos há um bom tempo, os mesmos R$ 600 de 2 anos atrás teriam de ser R$ 720 para manter o mesmo poder de compra.
Depois, com mais 1,6 milhão de famílias, a fila do Auxílio Brasil não será zerada. Havia, em abril, pelo menos 3 milhões de famílias elegíveis fora do benefício. Esse número havia dobrado em um único mês, de março a abril. De lá para cá, com a aceleração dos níveis de pobreza e o mau desenho do Auxílio Brasil —que estimula a divisão artificial das famílias para se apresentar como candidatas ao recebimento do benefício—, a fila pode estar batendo em 5 milhões de famílias.
A maneira como a PEC acabou formatada, depois da inclusão de subsídios para transporte público de idosos e produção de etanol, dá a medida de que produzir “bombas fiscais” não era preocupação ou limitação. Depois de turbinar o Auxílio Brasil, dobrar o vale-gás bimestral e criar uma transferência de R$ 1.000,00 mensal para caminhoneiros autônomos, o pacote aprovado no Senado ainda incluiu R$ 2,5 bilhões para ajudar taxistas profissionais e R$ 500 milhões para o programa “Alimenta Brasil”. Faltou consenso para também abrir espaço a benefícios a motoristas de aplicativos e ampliar o poder destrutivo da “bomba fiscal”.
No acordo firmado pelos senadores, o governo não poderá se valer do “estado de emergência” para criar benefícios sociais no período eleitoral. As torneiras de gastos abertas pela PEC, contudo, produziram desconfianças de que o governo Bolsonaro ainda tentará se valer do espaço conquistado para mais medidas eleitoreiras, se continuar atrás nas pesquisas eleitorais.
Os gastos fora do teto com o pacote de benefícios da PEC já aprovada no Senado somam cerca de 0,5% do PIB e devem elevar o total de despesas em 2022 a perto de 20% do PIB, revertendo uma trajetória descendente depois do pico de 26,1% registrado em 2020, na esteira da 1ª grande onda da pandemia de covid-19. Antes da PEC, projeções apontam despesas primárias em montante equivalente a pouco mais de 18% do PIB, neste ano.
Não custa deixar claro que o problema não é o nível de gastos em si, mas a maneira como ele se dá. O avanço da pobreza e da fome, nos últimos 4 anos, dá validade a aumentos de gastos, desde que de forma previsível e estruturada.
No improviso e no voluntarismo, a sombra da ineficiência se apresenta e leva ao pior dos mundos —de um lado, o atendimento falho e parcial dos elegíveis; de outro, a ampliação dos riscos fiscais e das pressões inflacionárias que costumam acarretar. No fim da história, essa busca por um punhado de votos, passando por cima das regras e normas, tem tudo para limitar o efeito social positivo dos benefícios concedidos.