Ele foi liderança do PCB em Mato Grosso do Sul, lecionava na Ufscar e é autor de vários livros, enfrentava um câncer havia dois anos (Por Edson Moraes)
A história política do País será incompleta e deturpada se não contar, com o devido destaque, a trajetória de lideranças que foram essenciais para a resistência à opressão, a reconquista e a reconstrução da democracia. Houve forças políticas e houve homens e mulheres de todas as idades neste que foi um dos terrenos mais hostis a quem sonhava com liberdade e ia muito além, quando corajosamente ousava defendê-la publicamente e às vezes no cruel anonimato imposto pelas baionetas e paus-de-arara.
Uma destas forças foi o Partido Comunista Brasileiro (PCB), assim como sua dissidência, o PCdoB. E um destes homens foi Amarílio Ferreira Jr. Na quinta-feira passada, 04 de abril, ele deu seu último suspiro. Tinha 73 anos e encerrava ali dois anos de luta desigual contra um câncer. Contudo, há legados imperecíveis que não sucumbem com a morte física. São, em princípio, heranças de vidas exemplares – mas servem, sobretudo, como exemplos do que se pode fazer, no possível e no impossível, para que cada pessoa, em qualquer canto do mundo, respira liberdade e igualdade.
VERMELHINHOS
A história de Amarílio é este legado. Quando morou em Campo Grande, o casal Amarílio e Marisa Bittar, ambos professores e vermelhinhos – como eram chamados os militantes do partidão -, dedicou-se intensamente à organização do PCB e às lutas de resistência democrática e popular. O mais difícil era organizar, fazer funcionar e ainda recrutar militantes para um partido clandestino.
Ele foi um de meus recrutadores. O primeiro passo foi em 1978. Não houve convite, mas um aceno. Estreitamos a amizade. E em 1979 ele e outros dois amigos, Flávio e Mário Sérgio, bateram o martelo. Interessante é que, quando resolvi ser do PCB, o Amarílio me levou pra ter a minha primeira conversa com o advogado Onofre da Costa Lima Filho. Era o “gerentão” dos nossos bastidores.
Fui receoso. E quando ele perguntou se estava mesmo querendo ser militante clandestino do PCB, eu respondi: “Sim. Só tem um problema: sou cristão, católico, e não abro mão”. O Onofre disse então pro Amarildo, o inevitável cigarro entre os dedos: “Este é dos nossos”. E completou, olho no olho: “Edson, o que queremos de você é compromisso com a democracia, com a honradez e com a construção do dia seguinte. Ser cristão é virtude, o defeito é ser mentiroso”.
SÓ UM FUSCA
A confraria marxista-leninista na cidade não era tão pequena – cabiam em mais de um Fusca, geralmente vermelhinho. Um deles chegou a ser “disfarçado” de branco ou amarelo para despistar os mal-humorados botinudos da repressão. Amarílio cumpriu, com sabedoria, simultâneos papéis, desde as tarefas de agiprop (agitação e propaganda) ao ensinamento ideológico. Um intelectual de elevado naipe, a bordo de seus óculos de fundo de garrafa e nos brilhantes lampejos de suas abordagens.
Óbvio: não tinha unanimidade em tudo. Vez por outra digladiava-se com os camaradas que, no seu entender, resvalavam na interpretação do materialismo dialético ou errava – também a seu ver – na direção da sigla. O “partidão” rachou na forma e no modelo, mas o conteúdo do ideal não se modificou. Até que um dia veio o PPS…bem, esta é outra triste história a ser contada pela própria História.
Amarílio agora descansa e tem boas companhias. Cito alguns e por meio deles todos sejam saudados: Fausto Mato Grosso, Acelino Granja, Euclides de Oliveira, Aristides Maldonado, Onofre da Costa Lima Filho, Marluce Bittar, Luiz Salvador, Marluce Bittar…é, agora descobri que além de não “comer criancinha” e nem “incendiar igrejas”, os comunistas também cabiam em mais de um Fusca.
DADOS DO CAMARADA
Amarílio Ferreira Junior foi professor Titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Tem doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutorado em História da Educação no Institute of Education da University of London.
Também foi titular no Departamento de Educação, presidiu a Adufscar (Associação dos Docentes da UFSCar) entre 2017 e 2021. Amarílio também tem vários livros publicados, entre eles: “A Educação Soviética” e “A Escola da Revolução Russa”, em co-autoria com Marisa Bittar; “Húmus da Terra” e “Metrópole”.