Não é exagero nenhum afirmar que o brasileiro tem alma generosa, um espírito bem humorado e vocação para alegrar o mundo. Este é, no entanto, um lado da moeda comportamental do País. Há outro lado, que poderia ser chamado de Lado B, aquele no qual se processam os vários tipos de cânceres conceituais e comportamentais, os desvios de caráter ou de formação que, por critérios de escolha, privilegiando ou discriminando, induzem pessoas à prática da seletividade nas relações humanas.
O preconceito racial repousa, se nutre e explode nestas camadas, infelizmente ao longo de toda história da colonização brasileira. Desde o descobrimento, em 1500, com a chegada dos portugueses, e sem seguida com o avanço da cultura europeia, os padrões de qualidade e apreciação estéticas no Brasil foram plasmados pelo biótipo clássico dos europeus. Isso criou, em consequência, a contracultura humanista, a depreciação racial que atirou os africanos e os seus descendentes a compartimentos sociais e econômicos marginais.
Segundo a professora Camila Betoni, com Mestrado em Sociologia Política e Graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), é preciso conhecer e entender as raízes socioeconômicas e éticas da cultura racista que, a seu ver, é consolidada e estimulada no Brasil. Ela parte de um pressuposto segundo o qual o racismo consiste na atribuição de uma relação direta de características biológicas com qualidades morais, intelectuais ou comportamentais, implicando sempre em uma hierarquização que supõe a existência de raças humanas superiores e inferiores.
Afirma a socióloga que fatores como a cor da pele ou o formato do crânio são relacionados a uma série de qualidades aleatórias, como a inteligência ou a capacidade de comando. “Discursos racistas historicamente têm servido para legitimar relações de dominação, naturalizando desigualdades de todos os tipos e justificando atrocidades e até genocídios”. E acrescenta: o racismo e as teorias racistas não surgiram do nada, pois possuem uma história própria. “Os primeiros discursos racistas derivam de uma visão teológica, são baseados na leitura de uma série de episódios bíblicos, como aquele no qual Noé amaldiçoa seu único filho negro, afirmando que seus descendentes seriam escravizados pelos descendentes de seus irmãos”.
É de deixar muita gente perplexa. E a socióloga continua: “Essas interpretações serviram para justificar e naturalizar relações de exploração, como a escravização do povo africano pelos europeus. Já no século XVIII surgem as primeiras teorias racistas de cunho científico. Da mesma forma como já fazia com as plantas e os animais, a Ciência passa a classificar a diversidade humana e, para tal, usa como critério central a pigmentação da pele. O problema central dessa classificação é que ela conecta a essas características físicas atributos morais e comportamentais depreciativos ou valorativos, a depender de que ‘raça’ se está tratando”.
Estas observações servem para ajudar na compreensão dos fatos recentes que associam diretamente as ambientações humanas e intelectuais entre o assassinato de um negro, George Floyd, nos Estados Unidos, por um policial branco, e as repetidas mortes de pessoas negras no Brasil, sejam ou não suspeitas e até sem ficha criminal, com tiros e agressões de policiais. O pior: muitas vezes, a arma que mata é utilizada por policiais negros, mas pressionados pela orientação conceitual que encontram antes mesmo do ingresso na segurança pública e pelo contexto estressante de sua atividade. O gatilho, porém, é disparado pelo componente opressor da seletividade racial.
Não há democracia racial no Brasil, como se vê. O romance entre Pelé e Xuxa e a troca de abraços entre o presidente Jair Bolsonaro e o deputado Hélio Negão nada mais são que a cópia da maquiagem que mitificou a democracia racial. Um mito. Não tem a escora firme e afirmativa da realidade humanista que inscreve a igualdade racial entre seus princípios. É fundamental que cada homem e cada mulher deste País se conscientize que a luta contra o racismo é uma luta pela igualdade e pelo amor, inspirada em um Deus que não faz acepção das pessoas para acolhê-las em seu reino. Discriminar é negar a Deus.