Todos os dias, vindas dos mais diferentes núcleos familiares e espaços de convivência ou ajuntamentos humanos, notícias sobre casos de violência doméstica são abertas pelos veículos de comunicação aos olhos e ouvidos da sociedade. Uma sociedade que, segundo especialistas em comportamento e catedráticos em saúde, anda bastante adoecida.
Exemplo gritante desta consideração foi o assassinato, premeditado e frio, de uma menina, quase bebê, de dois anos, em Campo Grande, no dia 26 de janeiro. Este caso – embora outros, semelhantes, se repitam – provocou na sociedade, ou, mais precisamente, na gente verdadeiramente de bem, mistos de sentimentos que englobam graus elevadíssimos de indignação, revolta, pesar, perplexidade e, porque não frisar, ódio.
Sim. Infelizmente, muitas cabeças indignadas sucumbiram à fúria dos sentimentos e passaram a pregar a insensatez como reação à insensatez. Mas não se aconselha trocar violência e ódio por violência e ódio. Isto é fazer a operação de seis por meia dúzia no balcão do crime da barbárie. Existe lei e justiça. A dos homens, que precisa ser aprimorada, ainda funciona. E a de Deus, bem, esta é no tempo Dele.
Contudo, não se trata de uma questão religiosa, embora crimes de tal dimensão sejam explicados por fiéis cristãos como ausência de Deus. Nada disso. Há milhares ou milhões de pessoas no mundo que não seguem este ou aquele Deus e, mesmo assim, levam a vida com melhor resolução de amor, de responsabilidade e de convivência humana do que muitos crentes.
O que explica o assassinato da menina Sophia de Jesus Ocampo é a composição de dois fatores, intrinsecamente associados nos fundos desvãos da irresponsabilidade: a leniência do sistema público institucional e o nível de consciência conceitual e comportamental da pessoa física, do ente civil. Ambos operaram contra a vida daquela criança.
Autoridades, como as de saúde, segurança e conselho tutelar, não prestaram atenção ou deram pouca importância ao fato de um quase-bebê ter no SUS uma ficha registral com mais de 30 atendimentos de saúde em cerca de um ano e meio. O padrasto, com consentimento da mãe, ou sua omissão, submetia a criança a sessões frequentes de espancamento e ainda a estuprou. Um delegado ou delegada, um policial ou qualquer agente da área de segurança deveria ter percebido a extensão e a gravidade da situação.
Sophia morreu porque não resistiu à brutalidade, não de apenas um padrasto, mas de uma mãe biológica e de todos os elementos (pessoas e organismos institucionais) responsáveis, no mínimo, pela proteção de sua integridade. A sociedade, como um todo, num capítulo assim, de extrema indignação e profunda dor, precisa entender que não está de fora, que faz parte do contexto, ainda que não frequente o núcleo de perversidade em que Sophia vivia e foi morta.
Ao ódio e à violência, todos precisamos responder com a energia do amor e da tolerância, mas sem renunciar à necessidade da vigilância e da aplicação da lei em seus ditames punitivos mais inflexíveis. Quando se está em jogo a defesa da vida, sobretudo a proteção de crianças e dos indefesos, não se pode fechar os olhos e nem considerar que “esse problema é da Polícia ou do Conselho Tutelar”.
Não. Não é problema só do vizinho. É problema nosso. De todos. Principalmente de quem cumpre a lei e tem autoridade para denunciar casos como este, cobrar as autoridades pertinentes e enquadrar os responsáveis, no caso retirando-lhe a guarda de um serzinho vulnerável e alojando-o em um ambiente livre de ameaças hediondas como a que vitimou Sophia. E ela só tinha dois anos.