LISBOA, PORTUGAL – Alçado ao posto de protagonista dos festejos do bicentenário da Independência do Brasil, o coração de dom Pedro 1º, atualmente em exibição restrita em Brasília, vem gerando comentários também por seu aspecto inchado e arredondado: bem diferente de um órgão “fresco”.
Por se tratar de um material conservado há quase 188 anos, alterações são consideradas normais, mas o inchaço do órgão intriga cientistas brasileiros que se dedicam há mais de uma década ao estudo dos restos mortais do antigo imperador.
Professor do departamento de patologia da Faculdade de Medicina da USP, o médico Carlos Augusto Gonçalves Pasqualucci diz suspeitar que o aumento de volume possa estar relacionado às substâncias utilizadas para preservar a relíquia.
“Não há nenhuma informação específica sobre em que líquido o coração está embebido”, diz Pasqualucci, destacando que algumas substâncias conservadoras podem acabar promovendo um pouco a dilatação dos órgãos.
“O formol normalmente não faz isso. Ele faz a fixação, mas normalmente não aumenta. Nós temos uma vasta experiência aqui [na USP], com vários órgãos acondicionados em formol há mais de 70 ou 80 anos, e as peças não mudam de tamanho”, completa.
O cenário mais provável é que o coração tenha sido removido já durante a autópsia realizada no monarca, quando o órgão foi separado para preservação.
Em 2015, o professor viajou até a cidade do Porto com sua orientanda no doutorado, a antropóloga forense Valdirene Ambiel, para propor uma análise científica aprofundada do coração e do líquido em que ele está imerso. A ideia era realizar um estudo liderado por pesquisadores portugueses, com a participação de brasileiros. O projeto, no entanto, não foi aprovado.
“O nosso primeiro interesse era recolher uma alíquota do líquido onde o coração está preservado. O segundo era fazer uma tomografia desse órgão e, o terceiro, se tudo corresse bem, era fazer uma biópsia por agulha, retirando um fragmento verdadeiramente minúsculo do coração para analisarmos do ponto de vista microscópico”, detalha Pasqualucci.
A composição exata do líquido no qual o material está imerso, bem como a documentação de eventuais mudanças feitas ao longo dos anos, não foi divulgada pelos guardiões do órgão. Os pesquisadores chegaram a vasculhar os arquivos históricos da Torre o Tombo, em Lisboa, mas também não encontraram essa informação.
Primeira cientista a estudar os restos mortais de dom Pedro e de suas esposas, Amélia e Leopoldina, a antropóloga Valdirene Ambiel diz que mantém a disposição para realizar um estudo do coração real, sempre em conjunto com os portugueses.
“Seria importante trazer para o Brasil também o aspecto do olhar português, porque muitas pesquisas são feitas separadamente. E nós temos aqui um órgão que tem toda uma simbologia histórica para os dois países”, afirma, salientando que a ideia nunca foi de levar a relíquia para São Paulo, mas sim de estudá-la em Portugal.
O trabalho desenvolvido por Ambiel em 2012 -envolvendo uma detalhada análise da ossada do imperador- ajudou a acabar com especulações de que o coração seria, na verdade, de algum animal. Os boatos surgiram justamente por conta da aparência mais dilatada do órgão.
A pesquisadora identificou que as costelas do lado esquerdo do corpo do monarca haviam sido serradas, muito possivelmente para a remoção do coração.
Devido à sua fragilidade, o órgão vem sendo mantido sob acesso bastante restrito na igreja da Lapa, normalmente guardado a cinco chaves. Por causa do empréstimo temporário ao Brasil, a Câmara Municipal do Porto (equivalente a prefeitura) organizou uma exposição inédita do coração de d. Pedro 1º no último fim de semana.
Após a temporada de 20 dias no Brasil, o coração será novamente exposto ao público em 10 e 11 de setembro. O prefeito do Porto, Rui Moreira, declarou nesta semana que pretende expor o coração do monarca a cada cinco anos.
Perito legista de Portugal, o médico Carlos Durão destaca a importância de pensar em todas as componentes de preservação do órgão.
“A exposição ao calor e a luz danificam as peças, pela mesma razão que os quadros, entre outras peças de museu, não devem ficar expostos ao sol ou calor. A imagem que temos de um laboratório farmacêutico ou de ciência é de uma sala cheia de frascos com vidros escuros, justamente para evitarmos os processos químicos induzidos pelo calor pela exposição à forte luz natural, que favorecem reações químicas”, diz.
Embora os restos mortais de dom Pedro 1º, conhecido em Portugal como dom Pedro 4º, estejam no Brasil, seu coração foi mantido no Porto a pedido do próprio monarca. A decisão foi um reconhecimento à importância da cidade na luta que ele travou contra as tropas absolutistas de seu irmão mais novo, d. Miguel, pelo trono de Portugal. Sob um cerco intenso durante mais de um ano, a cidade resistiu e foi crucial para a vitória de Pedro 1º. Ele morreria de tuberculose meses após o fim do conflito, em setembro de 1834, aos 35 anos, no mesmo quarto do palácio de Queluz em que nascera.