Por Edson Moraes
Uma das autoras mais lidas no País é assim: despojada, simples e, evidentemente, cuidadosa, sem ferir a doce espontaneidade que brota de suas palavras e de seu olhar juvenil em divertido desafio aos 82 anos. Ela, Ana Maria Machado, imortal e ex-presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL), escritora, jornalista e professora universitária, deu a Campo Grande na quinta-feira (25) o prazer de sua presença.
Na agenda daquela noite, Ana Maria Machado veio fazer uma palestra sobre um tema de instigante nomeação: “Literatura tem modo de usar?”. E ela adorou escolher este caminho temático, assim como o grande público que foi vê-la e ouvi-la também adorou.
Sua presença escreveu mais um capítulo do projeto “ABL na ASL – Palestras Imortais”. É o Chá Acadêmico, uma iniciativa da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras (ASL), em parceria com a Secretaria Estadual de Turismo, Esporte e Cultura (Setesc) e a Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul (FCMS).
Com mais de 100 obras e cerca de 10 milhões de exemplares vendidos até 2023, Ana Maria Machado foi a primeira escritora de livros infantis e infanto-juvenis a ingressar na ABL. Uma das raízes desta história pode ser encontrada nos anos 1969-70, na coleção de revistas “Recreio”, com histórias dirigidas ao público infantil. Morou e aprimorou os estudos na Europa, trabalhando em Paris em 1970, na revista Elle e lecionando na Sorbonne. Na École Pratique des Haultes Etudes, foi aluna do famoso semiólogo Roland Barthes. Ele a orientou na sua tese de doutorado sobre Guimarães Rosa, “O Recado do Nome”, que virou um livro.
O PERCURSO
Na junção de anos e experiências, mais de cinco décadas de trajetória, mais de 50 prêmios nacionais e internacionais, entre os quais três Jabutis e um Hans Christian Andersen ─ o mais prestigioso prêmio da literatura infantil, uma espécie de Nobel entregue a quem escreve para crianças. No percurso, exercendo o jornalismo, chegou a ser presa e enfrentou as agruras da ditadura militar. Dirigiu a Rádio Jornal do Brasil, de 1973 a 1980.


“Enfrentava nota de censura todo dia. (…) e era uma coisa só, escrever em metáfora para criança ou escrever para botar numa rádio do jeito que passasse pela censura. Eram duas coisas muito parecidas, só que minha linguagem era um pouco diferente, me obrigou a ter uma consciência muito grande da linguagem jornalística, da linguagem literária”, recorda. E Ana diferencia a pressão que era ontem da pressão de hoje:
“Hoje, o tipo de pressão que existe é um pouco diferente, na medida que antes era uma censura vertical, que caía como uma folha de guilhotina: vinha aquilo e pá! Cortava! Hoje, a censura vem pelas redes sociais, circular, anônima. Hoje vem pela rede social, que diz que você está falando mal disso ou daquilo, está ofendendo… E aí cresce, em duas horas você tem 14 mil mensagens chegando, uma coisa completamente diferente, muito mais eficiente do que a censura na ditadura”.
PROVOCAÇÃO
Para ela, a linguagem ideal é um mito, não existe. “Linguagem ideal é aquela que tem muitos sentidos, que não tem uma só interpretação. No caso da literatura, ela permite que o leitor descubra coisas diferentes naquele momento dele, que permita reapropriações múltiplas”, define. Contudo, chama a atenção para um detalhe na relação entre quem escreve e quem lê: o questionamento.
Ao ser indagada sobre o que a Academia de Letras pode oferecer em um estado conservador, ela aponta: o questionamento. “Manoel de Barros sempre questionou, não é agora que vai ser isso. Não que a literatura seja conservadora ou institucional. A literatura provoca, questiona, mesmo que o autor faça parte do estabelecimento”.
Ana Maria diz ser um mérito da ASL promover eventos no nível do Chá Acadêmico, reduzindo a distância entre a instituição e o povo. “É bom ter pessoas diferentes trocando ideias, ouvindo uns e outros, mesmo sem concordar às vezes”, afirma. “Quando me chamaram para vir, eu me propus a falar sobre literatura. E me disseram: escolha o que você quer. Eu quero literatura, aberta a múltiplas interpretações”, conta.
Ao concluir, sublinhou: “A literatura não pode ser confundida com bula de remédio, que diz para que serve, qual a dose que se vai usar, quais as contraindicações. Absolutamente não é isso. Há pessoas diferentes lendo o mesmo livro, e esse livro desperta nelas inquietações diferentes, que vão levar a percursos e leituras diferentes. Esta é a beleza da literatura, é isso que faz as obras literárias durarem no tempo”.