Marido e mulher, ambos bem empregados. Ele, na empresa de um amigo que lhe paga cinco salários mínimos, mais as comissões. E ela, na garagem de outro amigo do casal, ganhando quatro salários mínimos. E ainda tem uma microempresa e uma vaga na feira-livre da cidade. Ambos têm direito a cestas básicas, vale-refeição e vale transporte. Mas andam de carros próprios, um do ano e outro seminovo. E completam sua rendinha com o reforço de um programa de remuneração social do governo que no ano passado destinava R$ 180,00 a cada família carente.
Para que tivessem acesso ao benefício criado para atender famílias em situação de vulnerabilidade social e na linha da miséria, o casal descrito acima, cujos nomes são mantidos em sigilo enquanto a investigação continua, contou com a intervenção de dois amigos, políticos influentes para os quais faz campanha. Eles mexeram seus pauzinhos e conseguiram incluir apaniguados no lote de beneficiários, fraudando informações e caracterizando-os como família carente.
RADIOGRAFIA
Casos como este existem aos milhares em programas como o Vale Renda. E foi ao fazer uma radiografia minuciosa que seu idealizador e executor, o governo de Mato Grosso do Sul, por meio da Secretaria Estadual de Direitos Humanos, Assistência Social e Trabalho (Sedhast), encontrou e vai cancelar 22 mil bolsas do Vale Renda, que deveria beneficiar gente vivendo em extrema pobreza, mas também estava engordando pessoas com ganhos bem acima do mínimo exigido.
Famílias com renda acima de R$ 5 mil fraudavam as exigências das inscrições cadastrais para receber o benefício. A descoberta foi feita pela Sedhast (Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Assistência Social e Trabalho). Segundo o Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil 2010, da ONU, 3,5% da população de Mato Grosso do Sul vivem na extrema pobreza, o que justifica o esforço governamental para tomar iniciativas de suporte para a sobrevivência desse contingente humano.
Para combater irregularidades, a equipe técnica fez um cruzamento dos dados do programa Vale Renda com o Cadastro Único – um instrumento do Governo Federal que identifica e caracteriza as famílias de baixa renda e deve cancelar quase metade dos beneficiários. Atualmente, 45 mil famílias que recebem o Vale Renda já são beneficiadas pelo programa Bolsa Família ou não estão em situação de vulnerabilidade social.
As barbaridades são de vários tipos e impressionam. Uma família de Batayporã, composta por quatro pessoas e com renda familiar de R$ 6.072 continuava a receber o auxílio de R$ 180. Pelas regras do programa, só podem ser contempladas famílias com renda familiar per capita de até meio salário mínimo. Em Campo Grande uma família de três pessoas com salário de R$ 5.622 recebia o Vale Renda e em Três Lagoas uma família do mesmo tamanho e R$ 3.372 mensais era beneficiada. Há casos de famílias que recebem o benefício desde 2007, ano em que o programa foi criado.
A Sedhast apurou que algumas dessas pessoas superaram a situação de vulnerabilidade porque conquistaram emprego ou se aposentaram e hoje não se enquadram mais nos critérios, mas continuaram a receber o benefício. O secretário-adjunto Adriano Chadid explicou que o combate aos desvios é necessário para a manutenção do Vale Renda. “Aprimoramos o programa integrando nossa base de dados com a do governo federal. Queremos ampliar a rede de parceiros, evitar duplicidade e desvios”, assinalou.
FILTRAGEM
O governador Reinaldo Azambuja (PSDB) determinou que o processo de seleção seja ainda mais rigoroso, com a confrontação regular dos dados e o acompanhamento das atualizações cadastrais. Um dos objetivos é evitar o que muitas pessoas fazem, quando encontram emprego ou meios próprios para o sustento, mas não comunicam o governo para continuarem usufruindo do benefício.
Azambuja disse ainda que os 22 mil benefícios cortados por conta de fraudes serão repassados para pessoas que não recebem nenhum tipo de auxílio e estão com os cadastros encaixados nas exigências pré-estabelecidas. “Aquele número que nós economizarmos retirando quem tem duplicidade e pessoas que tem renda superior ao previsto, tudo aquilo que for economizado será investido em novas pessoas, em novos programas sociais para quem não tem nenhum tipo de beneficio”, explica Azambuja.
A varredura para achar essas irregularidades é feita com o cruzamento de dados do Vale Renda com o Cadastro Único, instrumento do governo federal que identifica e caracteriza as famílias com o perfil de vulnerabilidade. Foram descobertos casos de famílias que recebem Vale Renda e Bolsa Família e repasse indevido a pessoas fora da situação de fragilidade econômica e social.
No início do ano a Prefeitura de Campo Grande bloqueou os pagamentos do Bolsa Família para beneficiários que constam em relatório da Controladoria Geral da União (CGU), com a identificação de 106 famílias que possuem veículos avaliados em mais de R$ 20 mil. Em um dos casos foram encontrados 10 carros em nome do titular do benefício e dos filhos, com valores ultrapassando R$ 150 mil.
O levantamento foi feito entre junho e julho de 2018. Mais de 21 mil famílias recebem o Bolsa Família na capital do Estado. A média dos pagamentos é R$ 145 e os benefícios somam R$ 3,7 milhões mensais. Também foram encontrados casos de omissão de moradores das casas, e pagamento de benefício mesmo após o cancelamento por inconsistência de renda. A CGU identificou 55 casos irregulares em que algum membro da família é servidor, aposentado ou pensionista da prefeitura.