Junto à família, o lar é o ambiente mais seguro e adequado para o pleno desenvolvimento das crianças, certo? Nem sempre. É o que demonstraram autoridades e representantes de entidades que se dedicam a combater a violência contra crianças e adolescentes em Mato Grosso do Sul e que participaram de audiência pública na Assembleia Legislativa.
Segundo eles, o Estado lidera o ranking da violência e exploração sexual de meninos e meninas. Em Campo Grande, 2,6 mil denúncias são formalizadas anualmente na Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), o que representa sete casos por dia. Foram 850 nesses primeiros cinco meses de 2018.
Em 80% das ocorrências notificadas o agressor está na família, o que deixa sequelas para toda a vida. “É uma ferida que não sara. As pessoas dizem que o perdão e o amor curam, mas eu digo: é uma ferida que não sara. Hoje, estou bem, sou mãe de três filhos, mas repito: não sara”, relatou J.S.R, de 38 anos, que compartilhou ter sido vítima de violência sexual durante a infância.
Ela fez um apelo a todos os pais para que estejam mais atentos ao comportamento das crianças. “Olhem mais os seus filhos, observem, porque eles dão algum sinal. E outra, a violência também é cometida por mulheres. Não somente homens”, alertou.
A nova norma incluiu no calendário estadual o mês Maio Laranja e instituiu o dia 18 de maio como o Dia Estadual de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças. A data é a mesma do Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual Infantil, escolhido em memória a Araceli Crespo, que aos oito anos foi vítima de um crime hediondo, sem solução, em Vitória (ES), no dia 18 de maio de 1973.
Em casa, a violência é permeada por jogos e brincadeiras, o que confunde as vítimas. Segundo a juíza da Vara de Infância e Juventude e do Idoso de Campo Grande, Katy Braun do Prado, as crianças podem sentir o desconforto e mal-estar da agressão, mas querem permanecer no ambiente, o que dificulta a notificação dos casos.
Ela informou que 160 crianças e adolescentes estão afastadas do convívio familiar por decisão judicial. Na maioria dos casos, houve negligência por parte dos responsáveis. Em seguida, estão os casos de agressão. Dependendo da gravidade do caso, a criança pode ser entregue a uma família substituta ou adotada. “Temos casos de violência sexual e meninas assediadas que acabam sendo exploradas, especialmente nas camadas mais vulneráveis da população”, revelou.
Katy enfatizou que a rede de atendimento deve buscar alternativas para não revitimizar crianças e adolescentes, que muitas vezes precisam prestar vários depoimentos e reviver a violência sofrida, e incentivar cada vez mais as denúncias. “Temos que romper com a Síndrome do Segredo, especialmente entre os adolescentes, porque se o abusador fica impune ele continua praticando a violência”, analisou.
Entre as preocupações da rede de atendimento às vítimas, e um dos principais entraves às denúncias, está o fato de que o afastamento do agressor, muitas vezes, desestabiliza ainda mais a estrutura familiar. Para a psicanalista Viviane Vaz, autora da cartilha ‘A Culpa Não é Minha’, é preciso garantir a sobrevivência da família e oferecer o suporte financeiro necessário. Ela coordena o ‘Nova’, programa que assiste vítimas de violência desde 2011.
“Já passaram por nós cerca de quatro mil adolescentes, com idades entre 12 e 17 anos, e todos, sem exceção, já sofreram algum tipo de violência. Temos que investir em educação e comunicação, mudando, de uma vez, a conduta dos adultos”, analisou.
A titular da DPCA, Marília de Brito Martins, informou que desde 2012 o setor psicossocial da delegacia se dedica a atender às vítimas e familiares. “Cada vez mais, buscamos orientar os nossos policiais a buscar o olhar mais atento e sensível no atendimento. A rede funciona hoje muito bem, mas também necessita de investimentos. A delegacia é a porta de entrada de todos os casos”, afirmou.
De acordo com a secretária municipal de Educação, Elza Fernandes Ortelhado, estão sendo firmadas parcerias para a capacitação de educadores e ações de conscientização nas escolas.