“Já podeis, da Pátria filhos,/Ver contente a mãe gentil/Já raiou a liberdade/No horizonte do Brasil”.
Este é um dos versos do nosso Hino da Independência, que tem letra de Evaristo da Veiga e música – pasmem! – do Imperador D. Pedro I. É uma bela composição, apesar de uma exortação com frase racista (“filhos clama, caros filhos,/e depois de afrontas mil/que a vingar a negra injúria/vem chamar-vos o Brasil!”). Mesmo infeliz ao tingir de negra a pérfida injúria, a letra do hino cabe justinho no movimento que paralisa o País desde 30 de outubro, dia do segundo turno das eleições.
Os filhos e filhas da Pátria que resolveram bloquear estradas e montar acampamentos em frente aos quartéis estariam exercendo um incontestável e consolidado direito constitucional de manifestar seu inconformismo com as regras de um jogo aceito e aprovado por todos no primeiro turno. Naquela ocasião, os resultados favoreceram etapa essencial para um dos projetos de sustentação política em disputa, com a eleição da maioria de parlamentares e governadores dessa base.
Contudo, no segundo turno, na definição democrática do cargo mais alto dessa disputa, o triunfo premiou o projeto adversário daquele que havia saído vencedor na etapa inicial. Tudo também de uma forma constitucional, democrática. Caberia reconhecer no segundo o que se havia reconhecido no primeiro. Em jogo combinado, a expectativa de resultado é casada.
Porém, não é assim que pensa quem tirou seu tempo de sobra para permanecer na frente das unidades militares, bloqueando as vias públicas e estradas, queimando pneus e até praticando agressões e outros delitos – que já causaram danos consideráveis ao patrimônio e às pessoas. O pior é que tais manifestações assumiram seu perfil antidemocrático, empunhando as bandeiras da intervenção militar e da incitação popular à ruptura violenta das instituições.
E mais grave ainda é o acúmulo de prejuízos econômicos e sociais que os “patriotas” do caos estão causando ao Brasil. Nos 27 estados e no Distrito Federal há governos reeleitos e governos novos, uns que precisam continuar o trabalho relativo ao mandato que finda em dezembro e outros que precisam trabalhar para preparar a posse e ajustar as prioridades do que será feito a partir de janeiro. No Senado Federal, na Câmara dos Deputados e na Presidência da República as necessidades são semelhantes, mas acabaram sendo golpeadas pela paradeira.
O Brasil e os brasileiros são alvos de um movimento que agora deixa de ser limpo e saudável para a democracia e passa a configurar-se como um caminhão que desce a ladeira desgovernado, atropelando a razão, a sensatez, as pessoas e os direitos que assistem àquelas que aceitaram o veredito das urnas, gente que em vez de levantar-se contra a democracia cruzando os seus braços e destruindo o bom-senso preferiu seguir trabalhando e disposta à cumprir seus papéis, sabendo que haverá próximas eleições e novas chances de fazer o mesmo jogo com outras possibilidades.
Calcula-se, com dados da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), que só o bloqueio de rodovias iniciado em 31 de outubro passado será muito pior que o dos caminhoneiros que fizeram aquela greve de 2018. Na época, em 10 dias o volume de vendas caiu 5,8%, uma perda de R$ 18 bilhões. A demanda de serviços aumentou, as empresas reduziram os estoques e nenhum paralisador de estradas pagou por seus atos. O povo, como sempre, acabou pagando o pato.
E então? Já podeis, filhos da Pátria, ver contente a mãe gentil?
Tenho dito!