Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta aumento de 8,2% do crime sexual em comparação com 2021
O Brasil registrou em 2022 o maior número de casos de estupro da série histórica, iniciada em 2011. Os dados foram divulgados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública nesta quinta-feira (20).
Ao todo, foram 74.930 vítimas, uma média de 205 estupros por dia, o que representa um aumento de 8,2% na comparação com 2021. A taxa é de 36,9 casos para cada 100 mil habitantes.
Os números levam em conta apenas os casos que foram denunciados às autoridades policiais e incluem tanto estupro (18.100 casos) quanto estupro de vulnerável (58.820) —como são classificados os casos no qual a vítima tem menos de 14 anos ou quando ela não tem condição de consentir.
Manifestação por justiça no caso Mari Ferrer, organizado por entidades feministas no Vão Livre do Masp com caminhada pela Avenida Paulista e a rua da Consolação em novembro de 2020
Manifestação por justiça no caso Mari Ferrer, organizado por entidades feministas no Vão Livre do Masp com caminhada pela Avenida Paulista e a rua da Consolação em novembro de 2020 – Mathilde Missioneiro – 8.nov.20/Folhapress
Um estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) divulgada em março apontou que apenas 8,5% dos crimes de estupro são reportados à polícia e 4,2%, ao sistema de saúde. Ou seja, a quantidade de crimes do tipo deve ser ainda maior do que aponta o relatório do Fórum.
Cristina Neme, socióloga e coordenadora de projetos no Instituto Sou da Paz, afirma que, além das consequências individuais para as vítimas e o alto prejuízo psicológico, o crime tem impacto no sistema de saúde.
“Há um desafio das políticas públicas. Os dados demonstram uma forma de conscientizar e fortalecer elas para cuidar das vítimas e tentar reduzir as taxas”, diz Neme. O aumento do abuso sexual foi puxado, principalmente, pelo estupro de vulnerável. Por isso, a especialista analisa que é preciso enfrentar questões de igualdade de gênero e defesa dos direitos humanos.
Neme afirma que a escola tem um papel importante na violência dos jovens e ressalta sua preocupa com a discussão do home schooling no país. “É um retrocesso e afeta as crianças. Infelizmente, não temos uma solução milagrosa [para o estupro de vulneráveis] e, por isso, não podemos retirar aquilo que já sabemos que funciona.”
As maiores altas em relação a 2021 foram registradas no Amazonas (com crescimento de 37,3%), em Roraima (28,1%), no Rio Grande do Norte (26,2%), no Acre (24,4%) e no Pará (23,5%). Apenas quatro estados registraram queda de notificações: Minas Gerais (redução de 8,4%), Mato Grosso do Sul (2,1%), Ceará (2%) e Paraíba (1%).
Sobre a alta de casos no Norte do Brasil, Neme analisa algumas possíveis explicações. “Há uma série de fatores que contribuem para esse cenário, como crimes ambientais e disputa por garimpo, madeira e terras indígenas”, diz.
Os casos de tentativa de estupro e de estupro de vulnerável também aumentaram, indo de 4.482 em 2021, para 4.639 no ano passado, uma alta de 3%.
O relatório aponta que a maior parte dos estupros acontece dentro de casa (68,3%) e que a maioria das vítimas é mulher (88,7%), menor de 18 anos (80%) e negra (56,8%). Em 82,7% dos casos, a vítima conhecia o autor do crime.
Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum, considera que esse aumento de casos de estupro pode ter acontecido porque mais vítimas estão denunciado o crime às autoridades, na esteira de ações como o movimento MeToo.
“As campanhas têm um fator pedagógico para as pessoas entenderem melhor o significado de abusos e violência sexual”, diz. “É comum que as pessoas demorem a entender que foram vítimas, então isso as encoraja.”
Mas só isso não explica o aumento de registros, afirma ela. Bueno destaca que oito em cada dez vítimas de estupro têm menos de 18 anos, sendo que 61% tem até 13 anos. “Por isso, atribuir esse aumento dos registros de estupro ao empoderamento e maior informação pode ser um pouco ingênuo”.
A especialista aponta também que essa alta de casos em 2022 pode ter sido um efeito da pandemia da Covid-19, quando crianças e adolescentes ficaram em casa.
A crise sanitária gerou dois problemas, aponta a especialista, Por um lado, muitas vítimas passaram a ficar presas na mesma casa que seus agressores —a maior parte dos estupros no Brasil é cometida por familiares.
Além disso, professores e outros educadores são muitas vezes os primeiros a notarem mudanças no comportamento da crianças e, assim, suspeitarem que ela pode estar sendo alvo de abusos. Com as escolas fechadas, muitas vítimas ficaram sem esse apoio.
“O estupro não deixa de ser um crime de oportunidade, que acontece quando a criança está em uma situação de vulnerabilidade. Geralmente, acontecem com a criança que a mãe trabalha fora, tem que deixar o filho em casa e essa criança está exposta a um risco maior porque ela não tem um responsável ou o adulto que tem é o abusador”, diz ela.
“É comum que a criança entenda esse agressor como alguém em quem ela confia e a quem ela obedece. Muitas vezes, a criança nem é capaz de identificar o abuso a violência sexual que está sofrendo”, afirma Bueno.
Com a reabertura das escolas, já era esperado que o número de registros aumentasse. “Será estamos falando de uma explosão de casos de 2022 ou de casos que eventualmente começaram na pandemia e só foram notificados no ano passado?”, diz.
Quando o caso envolve uma menina, a maioria das vítimas tem de 10 a 13 anos. Já entre os meninos, entre cinco e nove anos.
Bueno diz que existem algumas hipóteses para isso, como o fato de que muitos agressores perderem o interesse em meninos durante a puberdade, o que não acontece com as meninas.
“Eu também não descartaria que tem um certo tabu para menino falar que foi abusado. É comum ouvirmos homens relembrando que a primeira relação foi com 11 ou 12 anos com mulheres de 20 anos. Mas, isso não é relação, é estupro”, exemplifica ela.
Para a promotora de São Paulo Silvia Chakian, os números mostram que o estupro é a forma mais trágica e escancarada de violência de gênero, aquela que traz na essência a desigualdade entre homens e mulheres construída e reforçada historicamente.
Ela afirma ainda que há diversos fatores que contribuem para o recorde de abusos registrados no Brasil, como relações construídas a partir das desigualdades de gênero, classe, raça e outros indicadores, fragilidade da proteção das crianças e adolescentes.
Além disso, outro fator que contribui é o tabu e desinformação que ainda revestem os debates sobre educação sexual. “Somado a isso, está o medo e o silenciamento das vítimas desse tipo de violência desse tipo de violência, majoritariamente praticado por pessoas do seu círculo de confiança, em ambiente doméstico e de forma contínua, reiterada.”
COMO DENUNCIAR
No caso de urgência, ligue para o 190
Para atendimento multiprofissional, vá a Casa da Mulher Brasileira. A mulher tem acesso a delegacia, Ministério Público, Tribunal de Justiça e alojamento provisório se não puder voltar para casa.
Na Ouvidoria das Mulheres, por meio de um formulário online.