O Diabo De Cada Dia (The Devil All the Time), da Netflix, é um filme de isolamento devastador; a floresta que cerca essas cidades parece faminta, pronta para se fechar. Há uma poeira espessa no ar. A primeira coisa que ouvimos já de cara, é uma voz lenta e sombria. Ela nos apresenta a época de 1957, e dois lugares: Knockemstiff, Ohio, e Coal Creek, West Virginia. A tal voz pertence a Donald Ray Pollock, o próprio autor americano que escreveu esse conto “gótico do meio-oeste”. Antonio Campos aqui é quem o adapta para a tela. Pollock, como o narrador, é sábio, estranho e ocasionalmente desbocado (ele sugere que um de seus personagens “cheirava pior do que um motorista de caminhão). Você pode imaginá-lo contando essa história sentado em uma velha cadeira de balanço, na varanda de uma casa de família.
O filme segue várias histórias interligadas, estendidas entre essas duas cidades totalmente empobrecidas. O epicentro dos eventos é a família Russell, marginalizada em Knockemstiff pela simples razão de que “todos estão ligados por sangue ou por uma calamidade esquecida por Deus”. O pai, Willard (Bill Skarsgard), é um veterano da Guerra do Pacífico, que numa volta pra casa traumática, ganhou imenso zelo pela fé cristã. Ele espera que isso proteja sua esposa Charlotte (Haley Bennett) e seu filho, Arvin (Michael Banks Repeta). Já a mãe de Willard, Emma, esperava que ele se casasse com Helen (Mia Wasikowska), uma órfã local, mas ela se apaixona por um evangelista, Roy (Harry Melling), cujo truque é derrubar um balde de aranhas em sua cabeça para provar que Deus levou embora seus medos.
Então, reencontramos Arvin agora quando ele é mais velho (interpretado por Tom Holland), e aqui nesse ponto ele é o confidente íntimo e protetor da filha de Helen, Lenora (Eliza Scanlen), uma menina tímida e nervosa que é totalmente devotada à mãe adotiva (vó de Arvin) e à Deus. Ao mesmo tempo, dois assassinos percorrem as estradas entre as duas cidades. Sandy (Riley Keough), a “isca”, e Carl (Jason Clarke), o “atirador”, que seduzem os caronas, fazendo eles posarem para fotos sexuais com Sandy e, em seguida, acabando com suas vidas. Já Robert Pattinson faz uma aparição tardia como um pastor fajuto, Preston. Com um sotaque caipira e voz ofegante de tanto pregar, o ator sabe como se tornar uma presença realmente desagradável.
Esses personagens vivem sob os olhos de um Deus indiferente: morrem por ele, matam por ele, e usam seu nome para proteger suas hipocrisias. “Esta era a única religião verdadeira ali”, diz Pollock sobre a sede de sangue de Carl e todos os outros. “Somente na presença da morte poderiam sentir a presença de algo como Deus”. O elenco escalado por Campos é uma coleção dos olhos com a aparência mais assombrada de Hollywood. Skarsgard, Keough e Wasikowska parecem cadáveres zumbis ambulantes.
Há muito para desvendar em O Diabo De Cada Dia, mas a história é bem ritmada e ganha impulso narrativo conforme os vários tópicos aparentemente não relacionados se aproximam cada vez mais em um curso de colisão. O diretor Antonio Campos opta por um tom sério; os únicos exemplos de humor irônico podem ser encontrados na narração de Pollock. Os detalhes de época são impecáveis e o filme merece notas altas por seu estabelecimento perfeito de tempo e lugar.
O Diabo De Cada Dia é ousado em sua abordagem desse material ultra violento e triste. A produção resultante é envolvente, e nada convencional – é uma história bem contada cujo cenário evocativo e performances vivas se combinam para produzir um quadro sombrio e desolador.
5 pipocas!
Em cartaz na Netflix.