Coube a um único ser, em toda a história da Humanidade, o pesadíssimo fardo de entregar-se à punição máxima da lei, mesmo sendo inocente e sabendo que poderia livrar-se de seus carrascos se assim o quisesse. Contudo, ele, só ele, tinha a dimensão da tarefa que iria cumprir ao deixar-se imolar, porque era assim que, inocente, libertaria os culpados da carga do pecado e da morte.
Aquele ser respondia pelo nome de Jesus Cristo e o seu sacrifício aconteceu há mais de dois mil anos. Foi este capítulo bíblico que inspirou a antiga máxima popular de que sempre haverá um justo pagando pelo pecador. Pode ser verdade. Porém, não com a quantidade volumosa e por enquanto sem freios das vidas inocentes que a pandemia do Covid-19 vem ceifando.
Sim, vidas inocentes de pessoas que não poderiam, em tese, ser contaminadas se o pressuposto largamente difundido do isolamento social horizontal estivesse na ordem-do-dia de toda a população. Desde o início desta calamidade tem gente que procura, de alguma forma, atender às recomendações científicas, principalmente guardando-se na quarentena, ficando em casa e tomando os cuidados preventivos essenciais.
Infelizmente, há outro lado nessa questão. O lado da irresponsabilidade. O lado da inconsequência. Da estupidez. O lado de quem age pensando ser mais realista que as realidades de sua aldeia, do seu Estado, do seu País, do mundo e que vive. E é aí, nesse lado, coabitado por milhares – ou mais de milhão – de pessoas, que está depositada uma bomba-relógio altamente destrutiva, de efeito retardado, pousada no colo de todo Mato Grosso do Sul.
Enquanto os números oficiais indicam um número bem baixo de óbitos – eram nove até terça-feira passada – e de infectados, via-se o intenso fluxo humano pelas ruas, praças, lojas e nos demais ambientes de circulação e consumo na Capital e restante do Estado. Uma imensa parcela indiferente a cuidados como o uso de máscaras, de luvas e o distanciamento mínimo uns dos outros.
Transeuntes, consumidores e comerciantes, a pé, de moto, bicicleta ou de carro parecem não acreditar na letalidade e no poder mortal de uma doença que em ambientes de grande circulação e contato entre humanos se propaga com incrível velocidade. E os mesmos transeuntes, consumidores e comerciantes parece duvidarem dos diagnósticos médicos e dos informes científicos para riscos hoje na conta de uma tragédia à vista.
A rápida propagação transmitida pelos assintomáticos – pessoas que julgam estar em condições de levar uma “vida normal” sem saber que já foram infectadas e ainda não apresentam os sintomas – e a sobrecarga hospitalar que conduz ao colapso de todos os sistemas de saúde pública e privada. O Governo do Estado e boa parte das prefeituras – como a de Campo Grande – estão fazendo tudo e mais do que podiam. Assumem atitudes que contrariam a plateia, fazem restrições necessárias, criam alternativas de subsistência às famílias que mais necessitam, instituem programas e serviços emergenciais para combater e prevenir a pandemia.
Nada disso, lamentavelmente, está alcançando os resultados desejados. O Estado e Campo Grande estão entre as unidades federativas com o pior desempenho na adesão popular ao isolamento social amplo. É este o cenário de propagação veloz do Covid-19. O vírus se alimenta do afrouxamento das medidas preventivas, das quais a quarentena e o isolamento social horizontal são os mais eficazes para inibir o avanço da pandemia.
Enfim, as esperanças de uma superação desta praga em curto prazo vão ficando reduzidas a cada dia. Porque a cada dia tem mais gente exposta à contaminação nas ruas e outros ambientes de circulação humana. E a cada dia tem mais gente contaminada e sem sintomas transmitindo o bichinho maldito à esposa, aos filhos, à família, vizinhos, colegas de trabalho e parceiros das mesas de bares e botecos que mantêm a freguesia.
É bem possível que as autoridades saibam, de fontes confiáveis, seguras, que os números da devastadora pandemia não se limitam aos dados oficiais. Há muito, muito mais infectados e, provavelmente, mortos, que ainda não tiveram seus laudos apurados. Se o povo não coopera, perde o direito de reclamar. E até de chorar seus cadáveres. Até porque os velórios e despedidas o coronavírus riscou do mapa das nossas dores.